quinta-feira, 18 de abril de 2019


                         A Menina dos olhos d'água 


Contos alusivos a historias que pairam nos pagos do Rio Grande do Sul



Manhã do mês de agosto, 2017!  Calor humano, manhã fria!
Nas ruínas da igreja de São Miguel das Missões, penetrava em mim o calor do sol morno, aquecia  tanto quanto o pala que me cobria.
 derramava-se sobre os pampas do sul, o veneno  da ganancia do homem branco. Pairava ainda no ar, o hálito dos soldados portugueses e espanhóis, assombrando  tekohas  Guaranis; Parte, fração, pedaço do rincão, pra sempre meu Rio Grande.
A brisa  acariciava tudo o qual através dela se expressava. Trouxe de volta o som de vozes do passado. Ecoava nas campinas em torno do que restou dos tempos dos jesuítas, o som  das badaladas do sino da igreja em reúnas, qual  ainda se escuta do metal a melodia. A brisa trazia também  o eco da voz  de Sepé Tiarajú, . em palavras   aguerridas gritou  assim:
-Esta terra aqui tem dono!
Deitava-se  obre o solo antes, dos Charruas , tupis e guaranis, a branca geada fria, sepultando  heróis donos da terra.
 Ali, em 10 de fevereiro de 1754, na Batalha de Caiboaté, tombou o mito guarani, Sepé Tiarajú.
O índio herói de guerra, conduziu à morte, o corajoso exercito de índios mansos. 





Nascera entre as ruínas das missões, uma rosa vermelho kaiowá. Os  espinhos feriram suas pétalas. Ela não estava  só. Um anjo veio restaurar a flor.  


                                          

Ao som do silencio profundo, Rosa escutou  um chamado! 
Foi o primeiro encontro entre elas; Rosa, a cigana missionária  e a indiazinha  com olhos d’água.
Rosa mística, assim ficou  conhecida por pessoas que cruzaram  seu  caminho e permitiam que ela lesse suas mãos.
Algumas  reconheciam-se irmãs de outras vidas, outras, eram carmas. Ao estar diante da menina de olhos brilhantes, Rosa mergulhou  num lago de águas profundas e cristalinas; ou seria a alma da pequena Guarani?  
As duas esferas brilhantes se destacavam  no rosto moreno da indiazinha. Olhos de cristal,  fazendo-a  imagem e semelhança do grande  criador do universo. E sem que  ela pronunciasse qualquer palavra ou canto, na intenção de lamento  ou desejo de  criar mundos, como fora  feito por seu criador, a descendente do Deus Yamandú , simplesmente sorria, guardando em si,   o pranto do seu povo. Trazia vivos dentro dela, os mortos  da guerra guaranítica.  Manchando os pampas do sul, o sangue derramado por mais  de vinte mil índios guaranis da região dos sete povos das missões, é a  seiva que corre nas veias da indiazinha, que mantem  viva a historia. Em São Miguel das Missões, diante da cruz , muitos indígenas ali tombaram! Outros, foram levados por colonizadores a povoar novas aldeias. Mas aquela  indiazinha permanece  ali, como sempre esteve, cuidando do seu povo. O doce sorriso da menina, foi  navalha ferindo a alma daquela que diante dela, percebendo   a tristeza da criança, também, docemente  lhe retribuía o sorriso. Dançar, sorrir, cantar pra alegrar a terra.  Sagrada herança dos filhos de Yamandú, do caos, conseguem  criar mundos.
                     
                    







 













terça-feira, 18 de dezembro de 2018

MITO DA CRIAÇÃO DO UNIVERSO

                              O Mito da Criação do Universo 
                  





Lenda de origem  Tupi Guarani,  explica  a criação do universo segundo  crenças espirituais  de muitos povos indígenas. Esta  história bastante  conhecida, tornou-se de domínio publico.

Neste espaço de arte e poesia, convido a entrarem nestas  paginas como se aqui fosse  uma casa de rezas. Sob o manto da espiritualidade que envolve o universo xamã,estaremos reunidos celebrando  a palavra, ânima do povo Guarani.. Honro a tradição mantendo  viva a história a mim  transmitida  oralmente por rezadores e caciques,  Tito Vialhalva e  Júlio  Ortiz, quando estive nas  aldeias Guiraroka- Dourados, e Laranjeira Nhanderu - Rio Brilhante, Mato Groso do Sul, onde convivi com os Guaranis Kaiowás , tão amáveis e gentis a ponto de  tornarem-me cativa de suas crianças. 
                                                                                                                                xxxxxxxxxx


Organizadora: 
Denize Domingos 
Ilustrações e edição de imagens; Denize Domingos 
Fotografias: DD. Joana Ortiz, e clube de fotos 

 Agradeço ao meu companheiro,  Gerson jung e minha filha Ananda, à Madre Joana Aparecida Ortiz , que através do CIMI Conselho Indigenista Missionário, apresentou-me ao mundo xamã com toda magia, sofrimento e encanto que os povos indígenas me fizeram ver e sentir.
À noite, quando fecho meus olhos, a brisa me traz a fumaça exalada das brasas das fogueiras. Escuto a voz dos rezadores em seus cantos e orações. Minha alma sai a passear, desprendida de mim  visita tekohas por onde estive. Em sonhos, abraço cada criança e beijo as mãos dos anciãos que me contaram esta história escrita aqui.  Saudades dos dias em que convivi na fraternidade das Irmãs Franciscanas de Nossa Senhora Aparecida, das orações e da paz compartilhada.
Lembranças do quarto ao lado da capela, das noites de ventania, quando os galhos de uma arvore açoitava o vidro da janela. E as sombras... faziam desenhos tão lindos!



      
 Em noites de verão, o cantar dos pardais   abstraíram  a paz do meu silêncio.   
Esperei o tempo das folhas  dos plátanos alaranjarem, e meus cabelos  cuspiram  salamandras, do meu coração, surgiram  aves de fogo.     








Queridos indiozinhos, vocês são pontinhos de luz brilhando neste Universo infinito.  Eu gostaria de ter vocês aqui comigo, próximos a uma grande fogueira.  As histórias sagradas têm mais força contadas à noite, celebradas com o elemento fogo. Salamandras aquecem corações e clareiam o caminho dos espíritos ancestrais para que venham nos abençoar enquanto o conhecimento se propaga.  E foi assim que aconteceu, numa noite em que as estrelas chegaram bem perto de mim, no tekoha  dos Guaranis Kaiowas, em torno de uma fogueira, um rezador  me contou   esta história, pedindo que eu a transmitisse a vocês. Mas antes de virar esta página, peçam aos seus pais que acendam uma vela na representação do elemento fogo 





Foram noites frias no mês de agosto, aquecidas por fogueiras, danças circulares e histórias.  O clarão da lua iluminava a casa de reza e os cantos sagrados se faziam doces murmúrios de Yamandu. Esta é uma história sagrada, muito antiga. Foi transmitida oralmente, de geração a geração, quando as crianças escutavam histórias em torno das fogueiras. Algumas coisas foram se modificando, mas a essência permanece a mesma. 






Foi num tempo em que não havia tempo nem espaço, no vazio do mundo fez-se a criação do universo.
Um pontinho de luz brilhou na imensidão do espaço vazio. 
O caos destruiu tudo que existia. Restou apenas ele:  Yamandu, luz divina.





Nem tempo, nem som!  
Yamandu era luz e força irradiando energia.
Mais luminoso do que qualquer sol, ele foi o primeiro ancestral de todos os ancestrais do mundo.
Embalado no silêncio do sono profundo, adormeceu e sonhou.  Viu-se Iluminado no clarão do próprio brilho, propagando o poder que dentro dele havia. 
 
 Yamandu quis conhecer sua dimensão e recolheu-se dentro de si.
 Cresceu! Cresceu!  Percebendo-se vasto. 




Sentiu-se grandioso, quis saber qual era o seu tamanho e se transformou em uma ave de sabedoria, a primordial coruja.
E no corpo de coruja, Yamandu viu-se dentro da Grande Noite, envolvido na imensidão das sombras. 






Yamandu transformou-se em outro ser, leve e ágil:  o colibri, Mainu, na língua guarani. Habitou o corpo do pequeno pássaro e conseguiu voar. Voou em torno de si, conhecendo sua própria dimensão, vendo-se grandioso.  


Na paz do silêncio profundo, Yamandu quis saber mais sobre ele próprio.  Recolheu-se em seu interior, desejando saber qual era sua totalidade.
O raio de luz se expandiu, e ele transformou-se na terceira ave: o gavião real, Macauã. Voou em várias direções, alcançando todas as dimensões do espaço, chegando aos lugares mais altos que nenhum outro ser poderia alcançar.  No corpo do Macauã, Yamandu enxergou seu tamanho, percebendo a vastidão que dentro dele havia.  
Neste momento, ele percebe que seria necessário criar mundos.
Fascinado com as maravilhas que poderiam existir, recolheu-se na harmonia  do sagrado silêncio.  Suspirou em êxtase, emitindo o primeiro som. Sua voz?  Foi um canto de alegria ecoando no vazio do mundo!   




E a partir deste magnifico canto, as estrelas foram surgindo, preenchendo a vastidão que ele trazia dentro dele.  Yamandu, perplexo diante do lume colorido das estrelas,
continuou a cantar, preenchendo   o espaço com  muitas
galáxias,  planetas, astros  e nebulosas.
Ondas sonoras emitidas na voz de Yamandu  foram formando o Universo. 




Do pensamento, ele compôs a alma:  Anhang ou aña.  A alma animou a matéria, surgiu então Anhandeci. No significado da existência divina,  Yamandu, criou o Universo em toda a vastidão dos mundos que  podemos imaginar. Das nebulosas foram surgindo vapores, neblinas, chuvas e águas límpidas, representado a emoção das almas. Neste momento, Yamandu cria Iara, a Mãe das Águas doces, para proteger todos os rios, lagos e cachoeiras que se formariam das chuvas e vertentes na terra.





Sentindo-se pleno, o primeiro ancestral dos ancestrais, recolheu-se na paz que há dentro dele, potencializado em fonte de energia.
Numa explosão de luz divina, Yamandu se transformou no Grande Sol, Coaracy, e do ventre deste grande sol nasceu Tupã, gerado no coração de Yamandu, filho do amor divino. 


Tupã controla as forças da natureza, raios, relâmpagos, trovões,  tempestades... Começa a cantar junto com o seu criador, ajudando-o a criar outros mundos, porque Yamandu é eterno e infinito. Numa noite de primavera, a brisa embalou Tupã em seus braços, fazendo o deus dos índios adormecer sobre as nuvens. Tupã sonhou com a nossa Mãe-Terra. Criou do seu próprio pensamento um cachimbo sagrado, o penteguá.
Aspirou um pó encantado, emanou o espírito da Terra, soprando a fumaça liberada de dentro dele.



O espírito da futura Mãe-Terra, tão leve quanto o ar, viajou no espaço, alongando-se em movimentos espirais, até transformar-se numa serpente luminosa.  
Flutuou, sinuosa, durante muito tempo, até escolher o lugar onde queria crescer. 



Naquele lugar, a serpente se enroscou e adormeceu, e foi se transformando numa tartaruga, num imenso jabuti. 
Ela deixou sinais luminosos por onde andou.  Tupã seguiu o flash de luz e encontrou o Espírito da Terra na forma de tartaruga. Tupã, que comanda raios, trovões, ventos e tempestades, evocou a força dos quatro elementos da Natureza: Água, Terra, Fogo e Ar. Olhando para o grande animal, Tupã desenhou no casco da tartaruga o majestoso manto bordado com lindas montanhas, vales, cachoeiras, rios e todas as maravilhas do Planeta Azul. Depois de ter feito o manto que vestiria a Mãe-Terra.





Tupã pensou em pôr alguém ali, para desfrutar daquele paraíso. Acalentado num sonho de amor divino, do seu próprio coração, Tupã criou o primeiro ancestral humano: Avadiquaquá, o primeiro adornado, o Homem Alado.



Tupã, divindade de imensa sabedoria, disse ao Homem Alado que ele deveria habitar a Terra.  Conhecer tudo que havia no Planeta Azul, saber o que ainda precisava ser feito e continuar a criação.
Entristecido, o Adornado respondeu:
— Eu sou um homem com asas, sei voar nas alturas, mas não consigo habitar a Terra.
O Criador explica ao Adornado:
Fostes criado do meu coração, adornado com asas douradas para que saibas o valor da liberdade. Dei-lhe asas para chegares aos quatro portais da Terra: Norte, Sul, Leste, Oeste. Em cada lugar encontrarás um Nhandeara, um guia espiritual que  ensinará tudo que precisa aprender. 



                                                     Ore Ma Roota Para Owai CD "Mborai Porã (cantos sagrado Guarani)


O primeiro ancestral do homem voltou a Terra, dirigindo-se ao Sul.  Encontrou a palmeira azul: Endovidju.
O homem com asas perguntou à palmeira se ela poderia ensinar-lhe a viver na Terra. A planta estendeu suas palmas, abrindo os braços pra abraçá-lo, dizendo-lhe que entrasse dentro dela para aprender a viver na Terra. O Adornado entrou na palmeira, tornando-se ela própria. Sentiu as raízes fixadas no solo, proporcionando a sensação de segurança. Gostou de estar ali!  Se alimentou da seiva que vinha da Mãe-Terra e gostou de sentir a brisa acariciar suas folhas e a chuva refrescando seus galhos... Permaneceu aconchegado no tronco da planta até que ela falou:
— Já aprendeu os ensinamentos que eu poderia transmitir, agora sai.


                             

O Adornado saiu do interior da palmeira, seguiu adiante, em direção ao Norte.  Lá 

encontrou a Grande Rocha.  Ele a olhou e perguntou se poderia ensinar-lhe alguma coisa.  

E a rocha se abriu diante do Adornado, deixando-o entrar nela. Fixado na pedra. O primeiro ancestral
 humano, ficou meditando muito tempo, vendo ao seu redor os encantos da natureza e  estações modificando-se ao longo dos dias: noites, meses e anos, quando o tempo era um 
contínuo sonho, até  o dia em que a Grande Rocha, Guia do Norte falou:

— Querido homem Adornado, já aprendestes tudo que eu podia ensinar-te, agora sai, segue tua jornada.
O Adornado saiu do interior da rocha e voou em direção ao Oeste.   Lá encontrou a Onça Ancestral, Yauaretê, pedindo a ela que lhe ensinasse alguma coisa sobre viver na Terra
A onça pintada permite que o Adornado entre dentro dela.
No corpo da onça, ele se transforma no animal. Pela primeira vez, sentiu o cheiro da terra, o aroma das plantas, diferenciando cada uma delas.
Com olhos de onça viu o Planeta Azul movendo-se lentamente, e pisou  na terra sentindo as quatro patas apoiadas no chão.
Andou tão levemente, como se o corpo flutuasse, sem fazer ruídos. E correu velozmente, como se precisasse alcançar a presa que a alimentaria.
Sentiu prazer em estar na terra. Mas a onça já havia lhe ensinado muito, e falou:
— Vou deixar-te aqui, ao pé da montanha, no Leste. Agora sai!  




Olhando para o topo da montanha, o Adornado percebeu que havia uma gruta lá no alto, de onde surgia uma luz encantadora. Curioso, ele voou até lá e encontrou uma serpente luminosa, enrolada no chão.  O primeiro ancestral humano perguntou quem era ela. A serpente respondeu:

— Meu querido, eu sou o Espírito da Terra.
O adornado pede que lhe ensine a viver na Terra.  A serpente não respondeu! Em silêncio, foi se movendo, recolheu um pouco da poeira que o vento soprava e o  barro que a chuva molhou.




Com esta mistura encantada, a serpente moldou um acento com dois pés, um tronco, corpo, cabeça, todo feito de barro. Colocou duas bolas de cristal no alto da cabeça da escultura de barro. Umedeceu-a com gotas de orvalho que caíam das paredes da caverna.  Só então disse ao Adornado:


— Agora entra dentro deste corpo!

O homem alado entrou no corpo de barro e pela primeira vez conseguiu andar. Experimentou a sensação de apoiar-se sobre as pernas. Caminhou em direção à entrada da gruta por onde adentrava a luz do sol brilhando lá fora. Com olhos de cristal, enxergou todo o esplendor do horizonte. 





Emocionado, percebeu o quanto a Terra era linda, e do seu coração saía um canto em louvor a Nhandessi, espírito da nossa  Mãe-Terra.
A grande mãe, Nhandessi, disse ao Adornado:
— Tu és meu primeiro filho, o primeiro homem a pisar na terra, fostes criado do coração de Tupã para cuidar de mim e habitar este planeta. Preserve tudo que existe aqui! 
Adornado, tens o poder que vem de mim, da própria Terra, a  qual  veste tua alma. Tens também o poder das águas, das pedras  e  das plantas.
Esse é o presente que te dou para ser usado com sabedoria, juntamente com o poder maior, recebido de Yamandu e Tupã. Cada palavra que sair da tua boca será  um espírito vivo.










O Adornado agradeceu os ensinamentos da Mãe-Terra. Pensou sobre tudo que havia aprendido. Caminhou contemplativo observando as maravilhas criadas por Tupã. O Adornado enxergou a beleza em sua essência.  Olhou para o azul do céu e exclamou uma palavra:

– Arara!
Surgiu diante dele a ave colorida, primeiro pássaro azul.
Espantado, ele disse:
- Linda! Arrara!
 Nasceu outra ave, coberta por penas vermelhas. 





O primeiro ancestral humano começa a falar palavras encantadas que lhe surgem na mente. Cada palavra se transforma naquilo que a imaginação desenha:

– Tucano! Mainú!  Araponga! Caturrita! Barreiro! Saracura!
Das palavras, o Adornado fez nascerem muitos pássaros coloridos, voando nos ares em contraste com o azul do céu.
Maravilhado com o dom recebido, foi falando muitas palavras, e cada uma delas trazia um novo ser.
– Pirarucu!
— Tainha! Lambari! Curimba! 
E nasceram outros  peixes, habitando as águas de Iara. O ancestral continuou andando, eufórico por estar povoando o planeta com diversos animais. Exclamava outras palavras, e da sua boca foi se completando o reino animal.

  – Panambi!
Nasceu a primeira borboleta, leve e fugaz, bailando pelos ares. 






E ele foi cantando nomes, até o dia em que os seres do céu, da água e da terra foram todos criados. De volta a gruta, o Adornado reencontra o Espírito da Terra. Ele já havia aprendido muito e aproveitado bem o corpo que recebeu emprestado.
Disse a ela:
 Minha querida Nhandessi, sagrada alma da Mãe-Terra, vim  devolver-lhe o corpo que recebi de ti. Aprendi a viver aqui e criei muitas maravilhas completando a criação de Tupã. 
Nhandessi respondeu que não precisava devolver, o corpo pertencia a ele pra sempre.
Humildemente, o Adornado falou:
— Devolvi o corpo que outros seres me emprestaram depois que recebi deles ensinamentos. Devolvi o corpo da palmeira depois de ter sido alimentado e embalado em seus galhos, saí da rocha quando ela me pediu que saísse do seu corpo.  Devolvi também o corpo da onça depois que senti o cheiro da terra, andei com as quatro patas pisando no chão.
É justo devolver-te este corpo feito de poeira e barro, essência que veio de ti. Nhandessi, a sagrada  Mãe-Terra, generosamente responde: 

      — Filho querido, gerado do coração de Tupã, dele recebeste a vida, eu te ofereci  um corpo. Conhece mais um pouco sobre mim. Vive por mais tempo a tua experiência neste mundo,  pisando na terra, experimentando  sensações humanas. 








Mas não desperdice o tempo! 
Depois, quando estiveres cansado, voltarás ao meu ventre.  Faça um buraco na terra e entregue a ela o manto que eu te dei.

E assim aconteceu, o primeiro Adornado desceu a montanha, onde o clarão ainda ilumina o interior daquela  gruta e continuou sua jornada .
O Adornado aprendeu a viver na terra, continuou cantando e criando muitos seres. Nasceram novas criaturas, alegrando a vida das outras, tornando-se amigos. Ele criou também divindades conhecidas entre Tupi Guarani. Criou novos povos, homens diferentes em forma física e crenças para viverem em harmonia, com a tarefa de ajudarem  os indígenas a cuidarem da Mãe-Terra, porque ela é plena e acolhe todos os filhos seus.  
Chegaram e partiram muitas primaveras, deixando o colorido das floradas na lembrança de quem enxerga as belezas da vida  com olhos de cristal.
Invernadas resfriaram a terra, despiram galhos das árvores de suas folhas douradas dançando ao ritmo da brisa. Vales e montanhas foram cobertos por geadas e neblina, convidando a descortinarmos o futuro pronunciado a cada amanhecer.
O sol sempre desponta aquecendo a superfície da Terra, alegrando corações.
Lento, o tempo passou...
Outono, a brisa soprava ares de nostalgia espalhando aromas agrestes na terra molhada com a chuva que caía. O Adornado já havia aprendido tudo que a experiência humana poderia ensinar a um homem já cansado de viver aqui. Ele andou em direção ao horizonte, encontrou o infinito.  Sentiu o barro vermelho grudar em seus pés. Lembrou que sua forma física havia sido emprestada. Ajoelhou-se, chorou ao olhar o céu. As gotas da chuva acarinhavam seu rosto, as nuvens foram clareando e através delas os raios de sol surgiram outra vez.





Então, o Adornado, com as próprias mãos  cavou um  buraco na terra. Deitou sobre ela o manto que lhe vestia a alma, misturando-se novamente ao barro do qual foi criado. Livre das limitações da forma física, o espírito do homem se libertou. O espírito do primeiro ancestral humano transformou-se em luz divina. O corpo de Avadiquaquá, enquanto viveu na terra, foi habitado  por Tupã, o Deus dos índios, que queria conhecer as emoções humanas e saber como é viver na Terra. Tupã é o grande sol, luz divina  que tudo ilumina.







                                                        (Música Mbyá Guarani #2 - Jaguota Javy)


                                                          Arte e Ilustração
                                                  Denize Domingos 

                                            O Livro estará  disponível em PDF 
                                            email;   domingosdenize@bol.com.br
                               Trabalho sem fins lucrativos, valorizando  a cultura indígena.